terça-feira, 1 de junho de 2010

Sociologia

O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO
O que nos é comum[1]
Nelson Dacio Tomazi
            Ao nascer, chega-se a um mundo que já está pronto, e essa relação com o “novo” é de total estranheza. A criança vai se relacionar e conviver com o mundo externo. Nesse momento ainda não se reconhece como pessoa, pois não domina os códigos sociais; é o “nenê”, um ser genérico.
            Com o tempo, a criança percebe que existem outras coisas a seu redor... Percebe que existem também pessoas – pai, mãe, irmãos, tios, avós – com os quais vai ter de se relacionar... À medida que cresce, vai descobrindo que há coisas que pode fazer e coisas que não pode fazer. Posteriormente saberá que isso é determinado pelas normas e costumes da sociedade à qual pertence.
            No processo de conhecimento do mundo, a criança observa que alguns dias são diferentes dos outros. Há dias em que os pais não saem para trabalhar e ficam em casa mais tempo... Nos outros dias da semana vai à escola, onde encontra crianças da mesma idade e também outros adultos.
            A criança vai entendendo que, além da casa e do bairro onde reside, existem outros lugares, uns parecidos com o local em que vive e outros bem diferentes; alguns próximos e outros distantes; alguns grandes e outros pequenos; alguns suntuosos e outros humildes ou miseráveis.
            Esse processo de conviver com a família e com os vizinhos, de freqüentar a escola, de ver televisão, de passear e de conhecer novos lugares, coisas e pessoas compõe um universo cheio de faces no qual a criança vai se socializando, isto é, vai aprendendo e interiorizando palavras, significados e idéias, enfim, os valores e o modo de vida da sociedade da qual faz parte.
            (...)
            Mesmo considerando todas as diferenças, há normalmente um processo de socialização formal, conduzido por instituições, como escola e Igreja, e um processo mais informal e abrangente, que acontece na família, na vizinhança, nos grupos de amigos e pela exposição aos meios de comunicação.
            O ponto de partida é a família, o espaço privado das relações de intimidade e afeto, em que geralmente, podemos encontrar alguma compreensão e refúgio, apesar dos conflitos. É o espaço onde aprendemos a obedecer a regras de convivência, a lidar com a diferença e a diversidade.
            Os espaços públicos de socialização são todos os outros lugares que freqüentamos em nosso cotidiano. Neles, as relações são diferentes, pois convivemos com pessoas que muitas vezes nem conhecemos. Nesses espaços públicos, não podemos fazer muitas das coisas que em casa são permitidas, e precisamos observar as normas e regras próprias em cada situação. Nos locais de culto religioso, por exemplo, devemos fazer silêncio; na escola, onde ocorre a educação formal, precisamos ser pontuais nos horários de entrada e saída, e assim por diante.
            Há, entretanto, agentes de socialização que estão presentes tanto nos espaços públicos como nos privados: são os meios de comunicação – o cinema, a televisão, o rádio, os jornais, as revistas, a internet e o telefone celular. Esses talvez sejam os meios de socialização mais eficazes e persuasivos. TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o ensino médio. 1ª Ed. São Paulo: Atual, 2007. Pp. 17-20
            COM BASE NO TEXTO ACIMA E NA SUA EXPERIÊNCIA DE VIDA, PROCURE RESPONDER:
1. Segundo o autor do texto, o que nos é comum?
2. Quando a criança ainda não se reconhece como pessoa, ela é, segundo o autor, “um ser genérico”, por quê?
3. Com o passar do tempo, o que a criança vai percebendo?
4. Quando vamos aprendendo e interiorizando valores e o modo de vida da sociedade da qual fazemos parte?
5. Existem diferenças no processo de socialização, por quê?
6. Nosso processo de socialização começa na família. O que devemos aprender com a nossa família e a nossa vizinhança?


[1] De bebês a adultos, em seu caminho de descoberta do mundo, todos os integrantes de uma sociedade passam pelo processo de socialização.

Sociologia.

Nossas escolhas, seus limites e repercussões
Nelson Dacio Tomazi[1]
            “Quando nascemos, já encontramos prontos valores, normas, costumes e práticas sociais. Também encontramos uma forma de produção da vida material que segue determinados parâmetros. Muitas vezes, não temos como interferir nem como fugir das regras já estabelecidas.
            A vida em sociedade é possível, portanto, porque as pessoas falam a mesma língua, são julgadas por determinadas leis comuns, usam a mesma moeda, além de ter uma história e alguns hábitos comuns, o que lhes dá um sentimento de pertencer a determinado grupo [social].
            O fundamental é entender que o individual – o que é de cada um – e o comum – o que é compartilhado por todos – não estão separados; formam uma relação que se constitui conforme reagimos às situações que enfrentamos no dia-a-dia. (...) algumas [pessoas] podem reagir e lutar, ao passo que outras se acomodam às circunstâncias. Isso tudo é fruto das relações sociais. E é justamente nesse processo que construímos a sociedade em que vivemos. Se as circunstâncias formam os indivíduos, estes também criam as circunstâncias.
            Existem vários níveis de interdependência entre a vida privada – a biografia de cada pessoa – e o contexto social mais amplo. A vida de um indivíduo está de alguma maneira, condicionada por decisões e escolhas que ocorrem fora de seu alcance.
            (...) a história de uma sociedade é feita por todos os que nela vivem..., conforme seus interesses e seu poder de influir nas situações existentes.
            De acordo com Norbert Elias, a sociedade não é um baile à fantasia, em que cada um pode mudar a máscara ou a fantasia a qualquer momento. Desde o nascimento, estamos presos às relações que foram estabelecidas antes de nós e que existem e se estruturam durante nossa vida. [...] Daí, tomar uma decisão é algo individual e social ao mesmo tempo, sendo impossível separar esses planos.
           
Vimos até agora como o indivíduo atua na sociedade e como a sociedade atua na vida do indivíduo. O processo pelo qual os indivíduos formam a sociedade e são formados por ela é chamado de socialização. A imagem que melhor descreve esse processo é a de uma rede tecida por relações sociais que vão se entrelaçando e compondo diversas outras relações até formar toda a sociedade.
Cada indivíduo, ao fazer parte de uma sociedade, insere-se em múltiplos grupos e instituições que se entrecruzam, como a família, a escola e a Igreja. E, assim, o fio da meada parece interminável porque forma uma complexa rede de relações que permeia o cotidiano. Ainda que cada sujeito tenha sua individualidade, esta se constrói no contexto das relações  sociais com os diferentes grupos e instituições dos quais ele participa, tendo por isso experiências semelhantes ou diferentes das de outras pessoas. TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o ensino médio. 1ª Ed. São Paulo: Atual, 2007. Págs. 13-17

COM BASE NO TEXTO ACIMA, RESPONDA CONFORME SE PEDE:
1.0  Por que a vida em sociedade é possível?
2.0  “Se as circunstâncias formam os indivíduos, estes também criam as circunstâncias”, por quê?
3.0  De acordo com Norbert Elias, a sociedade não é um baile à fantasia, em que cada um pode mudar a máscara ou a fantasia a qualquer momento, por quê?
4.0  Que se deve entender por socialização?
5.0  Você pensa que as mudanças na sociedade podem influir no comportamento das pessoas no espaço da família, da escola ou de outros grupos de convívio? De que forma?
6.0  A internet nos aproxima de muitas pessoas que com freqüência nem conhecemos, mas parece que nos distancia de quem está perto de nós. O que você pensa disso?


[1] Membro da Comissão de Ensino da Sociedade Brasileira de Sociologia. Consultor e membro da equipe de redação das Orientações Curriculares Nacionais – Sociologia.

Filosofia: A Senhora Fortuna

A senhora fortuna
Pablo Capistrano
            (...) Na antiga Roma imperial já se tinha consciência de que tudo aquilo que a vida nos dá com uma das mãos pode nos retirar com a outra.
            Curiosamente, essa idéia era representada na figura de uma deusa, cuja imagem era comumente encontrada em moedas. A Fortuna surgiu como uma divindade da fertilidade primogênita de Júpiter, deusa do destino que carregava numa das mãos uma cornucópia (uma espécie de chifre mágico) e na outra mão, um leme. De dentro da cornucópia dava aos mortais bênçãos diversas: dinheiro, amor, fama e sucesso. Com o leme, mudava, subitamente, o destino dos mortais.
            Pense num acidente de avião. Pense na quantidade de pessoas que tiveram bruscamente o destino de suas vidas modificado por esse desastre. Pense nas pessoas que, por um atraso de minutos ou por uma circunstância de pequenos desencontros, escaparam da morte [nesse acidente].
            Pensar sobre isso incomoda porque nos lança diante da evidência de nossa própria fragilidade. Somos muito pequenos diante das circunstâncias e o mundo, com seus ritmos e com seu amontoado de acasos, pode, num segundo, nos oferecer muito ou nos tirar tudo.
            A consciência dessa instabilidade é o ponto de partida da filosofia estóica. Originária na Grécia e depois trazida para o centro do Império Romano por Cícero, o estoicismo acabou por se tornar uma das correntes mais influentes da filosofia romana. (...) o estoicismo era exercido nos portões das cidades.
            Zonas de transição das cidades antigas, os portões (stoá em grego) eram espaços de intercâmbio, nos quais os estrangeiros e cidadãos comercializavam. O estoicismo cresceu, assim, entre os cidadãos de um império imenso, num mundo sem direitos ou garantias individuais, cercado de grande instabilidade e fragmentação.
            Entre os grandes pensadores romanos desse período encontramos Lucio Aneu Sêneca. Nascido em 3 a.C., filho de uma abastada família espanhola, Sêneca se destacou no mundo político e flertou diretamente com o poder. Chegou a ser tutor de Nero e juntou uma grande fortuna, cobrando impostos dos moradores da Bretanha ocupada.
            (...) Mas nem o poder político, nem a riqueza, nem o prestígio intelectual, nem todas as glórias e prerrogativas do Império impediram Sêneca de ter um fim de vida trágico. Vítima de intrigas palacianas, o filósofo acabou sucumbindo à loucura de Nero, e foi condenado a escolher entre o suicídio e a empalação. Diante dessas circunstâncias, acabou por seguir o exemplo de Sócrates e matou-se.
            Essa é a nossa gangorra.
            Um dia podemos estar bem, saudáveis, felizes: no outro, ser vítimas do leme da Fortuna. Um dos temas recorrentes do estoicismo era justamente esse “Como enfrentar a fragilidade do homem diante do destino?” Para os estóicos, é preciso aprender a perceber até onde nossos esforços podem interferir na ordem das coisas.
            O que diferencia o homem sábio do ignorante não é o volume de conhecimentos, mas a percepção da hora certa de abdicar da própria ação e aceitar o destino. Insistir em algo inútil é sinal de estupidez.
            A revolta contra aquilo que não se pode mudar não é uma atitude inteligente. Se eu não domino a totalidade das variáveis que determinam a minha situação, não faz sentido me revoltar contra aquilo que não posso alterar. O grande ensinamento estóico é o de que ninguém deve ter confiança excessiva naquilo que a vida oferece, porque o mesmo conjunto de fatores que o abençoa também pode derrubá-lo. Os bens da vida são transitórios e a única coisa sobre a qual nós podemos ter algum controle é o nosso próprio caráter.
            A serenidade diante do que não se pode mudar é, na visão de Sêneca, nossa grande resposta para a Fortuna. (...) Perder o equilíbrio é completamente inútil. Por isso carrego sempre uma moeda comigo. Para não esquecer que, nesse mundo, a probabilidade de se ganhar é a mesma de se perder e que nem a mais azulada tristeza nem a mais ensurdecedora alegria duram para sempre. (CAPISTRANO, Pablo. Simples filosofia: a história da filosofia em 47 crônicas de jornal. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. Pp. 79-82.)
                COM BASE NO TEXTO ACIMA, PROCURE RESPONDER CONFORME SE PEDE.
1. Segundo o autor, “somos muito pequenos diante das circunstâncias”, por quê?
2. Qual é o ponto de partida da filosofia estóica? E por que o estoicismo era exercido nos portões das cidades?
3. Fazendo referência ao trágico fim da vida de Sêneca o autor desabafa: “Essa é a nossa gangorra.” O que ele quis dizer com isso?
4. O que diferencia o homem sábio do ignorante?
5. Qual é o grande ensinamento da filosofia estóica?



            

Sociologia


AS RECEITAS

Rubem Alves

         “Quando eu era menino, na escola, as professoras me ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas semelhantes. Elas me ensinaram errado. O que me disseram equivale a predizer que um homem será um grande pintor por ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as idéias que moram na cabeça do pintor. São as idéias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançarem sobre a tela.
         Por isso, sendo um país tão rico, somos um povo tão pobre. Somos pobres em idéias. Não sabemos pensar. Nisso nos parecemos com os dinossauros, que tinham excesso de massa muscular e cérebros de galinha. Hoje, nas relações de troca entre os países, o bem mais caro, o bem mais cuidadosamente guardado, o bem que não se vende, são as idéias. É com as idéias que o mundo é feito. Prova disso são os tigres asiáticos, Japão Coréia, Formosa que, pobres de recursos naturais, enriqueceram por terem-se especializado na arte de pensar.
         Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?” Disse-me que esta era uma pergunta que o professor de filosofia havia proposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro por ter ido diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido a sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque, se tivesse dado a resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é como a águia que só alça vôo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.
         E, no entanto, não podemos viver sem as respostas. As asas, para o impulso inicial do vôo, dependem de pés apoiados na terra firme. Os pássaros, antes de saberem voar, aprendem a se apoiar sobre os seus pés. Também as crianças, antes de aprenderem a voar, têm de aprender a caminhar sobre a terra firme.
         Terra firme: milhares de perguntas para as quais as gerações passadas já descobriram as respostas. O primeiro momento da educação é a transmissão desse saber.
         Nas palavras de Roland Barthes: “Há um momento em que se ensina o que se sabe...” E o curioso é que esse aprendizado é justamente para nos poupar da necessidade de pensar.
         As gerações mais velhas ensinam às mais novas as receitas que funcionam. Sei amarrar os meus sapatos automaticamente, sei dar o nó na minha gravata automaticamente: as mãos fazem seu trabalho com destreza enquanto as idéias andam por outros lugares.
         Aquilo que um dia não sabia me foi ensinado; eu aprendi com o corpo e esqueci com a cabeça. E a condição para que minhas mãos saibam bem é que a cabeça não pense sobre o que elas estão fazendo. Um pianista que, na hora da execução, pensa sobre os caminhos que seus dedos deverão seguir tropeçará fatalmente. Há a estória de uma centopéia que andava feliz pelo jardim, quando foi interpelada por um grilo: “Dona Centopéia, sempre tive curiosidade sobre uma coisa: quando a senhora anda, qual, dentre as suas cem pernas, é aquela que a senhora movimenta primeiro? “Curioso”, ela respondeu. “Sempre andei, mas nunca me propus esta questão. Da próxima vez, prestarei atenção” Termina a estória dizendo que a centopéia nunca mais conseguiu andar.
         Todo mundo fala, e fala bem.
         Ninguém sabe como a linguagem foi ensinada e nem como ela foi aprendida. A despeito disso, o ensino foi tão eficiente que não preciso pensar para falar. Ao falar não sei se estou usando um substantivo, um verbo ou um adjetivo, e nem me lembro das regras da gramática. Quem, para falar, tem de se lembrar dessas coisas não sabe falar. Há um nível de aprendizado em que o pensamento é um estorvo. Só se sabe bem com o corpo aquilo que a cabeça esqueceu. E assim escrevemos, lemos, andamos de bicicleta, nadamos, pregamos pregos, guiamos carros: sem saber com a cabeça, porque o corpo sabe melhor. É um conhecimento que se tornou parte inconsciente de mim mesmo. E isso me poupa do trabalho de pensar o já sabido. Ensinar, aqui, é inconscientizar.
         O sabido é o não-pensado, que fica guardado, pronto para ser usado como receita, na memória desse computador que se chama cérebro. Basta apertar a tecla adequada para que a receita apareça no vídeo da consciência. (...)
         Não é coisa que eu tenha inventado. Foi-me ensinado. Não precisei pensar. Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental desse computador que vive no corpo humano: só vai para a memória aquilo que é objeto do desejo. A tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que ele deseje e, desejando, aprenda.” (ALVES, Rubem. A alegria de ensinar. Campinas, SP: Papirus, 2000. Pp. 77-81)
         COM BASE NO TEXTO ACIMA, RESPONDA:
1.0           Segundo o autor, para que existem as escolas?
2.0           Quando Rubem Alves faz referências às “receitas” ela fala em “terra firme”, o que isso significa?
3.0           “Aquilo que um dia eu não sabia me foi ensinado; eu aprendi com o corpo e esqueci com a cabeça”, por quê?
4.0           Segundo o autor, qual é a tarefa primordial do professor?
5.0           Para Rubem Alves, quando um aluno aprende?

Filosofia: "A medicina da alma"

A medicina da alma
Pablo Capistrano
         
            No Mito de Sísifo, o escritor francês Albert Camus aponta: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia”.
            Estar vivo é experimentar um pequeno intervalo de tempo entre a infância e a velhice. Uma boa parte das pessoas passa esse curto intervalo de tempo sem saber “o porquê”. Essas pessoas apenas existem como as pedras e as plantas. Fazem parte da paisagem. São ligadas à terra que as pariu com vínculos tão poderosos que não sentem toda a dimensão da própria vida, nem toda a fúria e a ansiedade que esse intervalo de tempo apresenta. Algumas pessoas fazem a pergunta fundamental: “Por quê?” O que significa: Apostar todo dia de manhã que a vida vale a pena?
            Epicuro entendia que uma das funções fundamentais da filosofia era a cura da doença da alma. Do mesmo modo que a medicina (...) curava o corpo, a filosofia contribuía para o desenvolvimento de um estado de pacificação do espírito.
            A prática da filosofia e da medicina levaria o sábio mais próximo de um estado de ataraxia e de aponia. Falta de perturbação na alma e falta de dor no corpo. Mas o intervalo de tempo entre a infância e a velhice que os humanos costumam chamar de “vida” é cheio de dor e sofrimento. Boa parte do tempo que você passa na terra tem a ver com a luta para evitar a dor que é inerente à nossa passagem nesse mundo.
            Você trabalha para ganhar dinheiro e ganha dinheiro para não morrer de fome, frio ou de doença. Você se esforça para ficar bonito para não sofrer com a solidão e luta para manter o vigor físico depois de certa idade para não perder a autonomia. Essa é a nossa comédia. Viver em constante luta contra o tempo, jogando xadrez com a morte, na certeza de que cada jogada é apenas um adiamento do xeque-mate.
            Epicuro buscou responder à questão: “Como é possível ser feliz em circunstâncias tão adversas?”
            A primeira idéia é a de que a felicidade não é um estado de espírito, mas um momento decorrente de uma prática, de um conjunto de hábitos. Eu nunca poderei “ser” feliz. A felicidade não é um estado de “ser”. Eu posso estar feliz quando eu estou sereno, e antes de qualquer coisa estar sereno é estar saudável.
            Estar feliz é estar envolto num momento que decorre de um longo esforço de superação dos próprios medos e de gerenciamento dos próprios prazeres. Para Epicuro, nossa perturbação mental derivaria de quatro fontes fundamentais: medo da morte, medo do castigo divino, medo da dor e do sofrimento e, finalmente, a dificuldade em gerenciar o próprio desejo.
            Todas essas fontes da doença da alma criam instabilidade, fraturam o equilíbrio do espírito e podem levar, facilmente, qualquer homem a um estado de desespero. A ciência moderna nos deu inúmeras pílulas mágicas que podem alterar o funcionamento de nosso cérebro e produzir estados de serenidade química. Isso talvez seja útil em estados patológicos avançados da doença da alma que podem nos arrastar para o suicídio.
            Mas não são suficientes. A resposta à pergunta fundamental de Camus não se encontra numa farmácia. Esta nos ajudar a recuperar a quantidade mínima de ausência de dor no corpo e de falta de perturbação na alma para que não sucumbamos ao desconforto de estarmos vivos e apressemos aquilo que sempre chega... Mas ela não basta porque não está embutido em nenhuma bula de remédio o conjunto de práticas e de atitudes mentais que me levam a recuperar minha serenidade e, com ela, minha saúde.
            Epicuro nos ensinou, na antiguidade profunda de uma Grécia em decadência, um modo de educar a nossa mente para que as idéias que reforçam o pânico não nos destruam.
            Diante do suicídio do poeta russo Serguei Iessiénin, Maiakovski, outro suicida ilustre, ofereceu uma resposta epicurista para o dilema de Camus: Para o júbilo // o planeta está imaturo // é preciso arrancar a alegria ao futuro. // Nesta vida / morrer não é difícil.// O difícil é a vida e seu ofício.
            COM BASE NA LEITURA DO TEXTO ACIMA, PROCURE RESPONDER CONFORME SE PEDE.
1.0   Para Camus, qual é o problema filosófico verdadeiramente sério?
2.0   Para o autor do texto, o que o suicídio representa?
3.0   O que significa “estar vivo”, segundo o autor?
4.0   Algumas pessoas fazem parte da paisagem. O que isso significa?
5.0   Para Epicuro qual é uma das funções fundamentais da filosofia?
6.0   Como é possível ser feliz em circunstâncias tão adversas?
7.0   Para Epicuro, nossa perturbação mental derivaria de quatro fontes fundamentais, quais são elas?
8.0   Faça um pequeno texto, de 15 a 30 linhas, dando sua opinião a respeito do suicídio. Ou escreva um texto explicando: o que significa apostar todo dia de manhã que a vida vale a pena?

Filosofia: "A invenção da ética"

“A invenção da ética”
Pablo Capistrano
                [...] o Sócrates grego era mestre em fazer surgir idéias, como as crianças que sua mãe, parteira de profissão, ajudava a vir ao mundo. Sócrates se tornou uma espécie de “santo da filosofia” através da descrição que Platão fez de sua condenação e de sua execução. Nesse sentido, comparações entre Sócrates e Cristo são inevitáveis.
                Os dois são personagens trágicos. Ou seja, tanto os evangelhos canônicos quanto os diálogos de Platão que falam sobre a morte de Sócrates utilizam a estrutura das tragédias gregas. A morte de alguém muito superior a todos nós. A via-crúcis de Jesus, assim como os momentos finais de Sócrates na prisão, à espera da cicuta que o matará, tem grandes semelhanças com a forma básica da tragédia descrita por Aristóteles e causa o mesmo impacto psicológico.
                O happy end da ressurreição e o discurso presente no Fédon (diálogo que descreve os momentos finais de Sócrates) aliviam um pouco o peso trágico dessas duas histórias. Sócrates morre sereno. Ele demonstra que todo seu esforço filosófico foi o de se preparar para a morte e de construir um trabalho espiritual e mental que o deixasse firme, pleno e tranqüilo diante do derradeiro instante. Sua superação da fragilidade dessa vida se encontra na investigação sobre a própria vida. 
Sócrates pensou sobre o homem. Ele inverteu o curso da pergunta dos primeiros filósofos.
Se antes a grande questão da filosofia era “O que é isso que constitui a natureza? Depois de Sócrates a pergunta passou a ser “O que é isso que constitui o homem?”
                Sócrates inventa a ética porque propõe uma investigação sistemática acerca da Justiça, do Bem, da Linguagem, da Virtude. Antes de saber como a natureza funciona, o homem deve pensar sobre o que realmente é importante nessa vida. Antes de mergulhar nos limites do universo, o homem deve saber dos seus próprios limites. “Conhece a ti mesmo.”
                A percepção dessa frase induz Sócrates a uma intuição básica. O papel da filosofia é preparar o homem para a morte, e para que o homem possa se preparar bem para a morte é necessário que ele conheça a si mesmo, que reconheça seus limites, sua própria ignorância e que pratique um tipo particular de esporte: a maiêutica [o parto das idéias].
                Essa é a arte de conseguir, por meio de perguntas e respostas, fazer surgir a verdade que habita cada um, mas que, por arrogância e presunção, não conseguimos escutar. Calamo-nos para essa voz interior. Fechamos os olhos para não enxergar nossa própria condição. Esquecemos nosso ser, trancamos a janela para a luz de nossa casa não iluminar a rua. Mergulhamos na banalidade do mundo e nos surpreendemos quando a morte chega e diz: “Cartão vermelho! Fim de jogo pra você!”
                A virada ética de Sócrates começa quando surge a idéia de que não importa quão grande forem os mistérios do mundo, mais importante é encarar os mistérios de nossa curta e limitada existência. (CAPISTRANO, Pablo. Simples filosofia: a história da filosofia em 47 crônicas de jornal. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. Pp. 49-51.)
1. O discurso presente no Fédon (diálogo que descreve os momentos finais de Sócrates) alivia um pouco o peso trágico de sua morte, por quê? Justifique sua resposta com partes do texto.
2. Sócrates inverteu o curso da pergunta dos primeiros filósofos. Que inversão foi essa?
3. Por que, segundo o autor, Sócrates inventa a ética?
4. “Conhece a ti mesmo.” A percepção dessa frase induz Sócrates a uma intuição básica. Qual?
5. Para Sócrates o que é mais importante na vida? E para você, o que é mais importante?