terça-feira, 1 de junho de 2010

Sociologia


AS RECEITAS

Rubem Alves

         “Quando eu era menino, na escola, as professoras me ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas semelhantes. Elas me ensinaram errado. O que me disseram equivale a predizer que um homem será um grande pintor por ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as idéias que moram na cabeça do pintor. São as idéias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançarem sobre a tela.
         Por isso, sendo um país tão rico, somos um povo tão pobre. Somos pobres em idéias. Não sabemos pensar. Nisso nos parecemos com os dinossauros, que tinham excesso de massa muscular e cérebros de galinha. Hoje, nas relações de troca entre os países, o bem mais caro, o bem mais cuidadosamente guardado, o bem que não se vende, são as idéias. É com as idéias que o mundo é feito. Prova disso são os tigres asiáticos, Japão Coréia, Formosa que, pobres de recursos naturais, enriqueceram por terem-se especializado na arte de pensar.
         Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?” Disse-me que esta era uma pergunta que o professor de filosofia havia proposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro por ter ido diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido a sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque, se tivesse dado a resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é como a águia que só alça vôo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.
         E, no entanto, não podemos viver sem as respostas. As asas, para o impulso inicial do vôo, dependem de pés apoiados na terra firme. Os pássaros, antes de saberem voar, aprendem a se apoiar sobre os seus pés. Também as crianças, antes de aprenderem a voar, têm de aprender a caminhar sobre a terra firme.
         Terra firme: milhares de perguntas para as quais as gerações passadas já descobriram as respostas. O primeiro momento da educação é a transmissão desse saber.
         Nas palavras de Roland Barthes: “Há um momento em que se ensina o que se sabe...” E o curioso é que esse aprendizado é justamente para nos poupar da necessidade de pensar.
         As gerações mais velhas ensinam às mais novas as receitas que funcionam. Sei amarrar os meus sapatos automaticamente, sei dar o nó na minha gravata automaticamente: as mãos fazem seu trabalho com destreza enquanto as idéias andam por outros lugares.
         Aquilo que um dia não sabia me foi ensinado; eu aprendi com o corpo e esqueci com a cabeça. E a condição para que minhas mãos saibam bem é que a cabeça não pense sobre o que elas estão fazendo. Um pianista que, na hora da execução, pensa sobre os caminhos que seus dedos deverão seguir tropeçará fatalmente. Há a estória de uma centopéia que andava feliz pelo jardim, quando foi interpelada por um grilo: “Dona Centopéia, sempre tive curiosidade sobre uma coisa: quando a senhora anda, qual, dentre as suas cem pernas, é aquela que a senhora movimenta primeiro? “Curioso”, ela respondeu. “Sempre andei, mas nunca me propus esta questão. Da próxima vez, prestarei atenção” Termina a estória dizendo que a centopéia nunca mais conseguiu andar.
         Todo mundo fala, e fala bem.
         Ninguém sabe como a linguagem foi ensinada e nem como ela foi aprendida. A despeito disso, o ensino foi tão eficiente que não preciso pensar para falar. Ao falar não sei se estou usando um substantivo, um verbo ou um adjetivo, e nem me lembro das regras da gramática. Quem, para falar, tem de se lembrar dessas coisas não sabe falar. Há um nível de aprendizado em que o pensamento é um estorvo. Só se sabe bem com o corpo aquilo que a cabeça esqueceu. E assim escrevemos, lemos, andamos de bicicleta, nadamos, pregamos pregos, guiamos carros: sem saber com a cabeça, porque o corpo sabe melhor. É um conhecimento que se tornou parte inconsciente de mim mesmo. E isso me poupa do trabalho de pensar o já sabido. Ensinar, aqui, é inconscientizar.
         O sabido é o não-pensado, que fica guardado, pronto para ser usado como receita, na memória desse computador que se chama cérebro. Basta apertar a tecla adequada para que a receita apareça no vídeo da consciência. (...)
         Não é coisa que eu tenha inventado. Foi-me ensinado. Não precisei pensar. Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental desse computador que vive no corpo humano: só vai para a memória aquilo que é objeto do desejo. A tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que ele deseje e, desejando, aprenda.” (ALVES, Rubem. A alegria de ensinar. Campinas, SP: Papirus, 2000. Pp. 77-81)
         COM BASE NO TEXTO ACIMA, RESPONDA:
1.0           Segundo o autor, para que existem as escolas?
2.0           Quando Rubem Alves faz referências às “receitas” ela fala em “terra firme”, o que isso significa?
3.0           “Aquilo que um dia eu não sabia me foi ensinado; eu aprendi com o corpo e esqueci com a cabeça”, por quê?
4.0           Segundo o autor, qual é a tarefa primordial do professor?
5.0           Para Rubem Alves, quando um aluno aprende?

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