sábado, 29 de maio de 2010

Sociologia.

A FESTA: OS RITOS DE PASSAGEM
Carlos Rodrigues Brandão
                “Basta olharmos para nossa própria vida, e com bons olhos veremos como ela é uma seqüência de situações únicas (o nascimento e a morte), raras (o casamento ou o nascimento de nossos filhos) ou repetidas (a série de aniversários) com que as pessoas da família, da parentela, da vizinhança ou dos círculos de trabalho ou de amizade nos festejam ou nos obrigam a festejar.
                Olhando nossa própria cultura vale a pena observar uma diferença curiosa e importante. Algumas sociedades comemoram com mais ênfase certos acontecimentos e situações, enquanto outras os deixam em segundo plano e dão mais importância a outros. Nas cidades médias e grandes as festas cívicas, históricas e profanas conquistam um lugar de crescente importância, enquanto nas pequenas cidades e nos povoados do interior elas ocupam um segundo plano, e os festejos locais e religiosos povoam quase todo o calendário. Aqui o Primeiro de Janeiro, o Carnaval, o Dia do Trabalho, o Vinte e Um de Abril e o Sete de Setembro; lá, o Dia de Santos Reis, a festa do padroeiro, a Semana Santa, as festas juninas. A família urbana e a cidade multiplicam na casa os ritos de passagem: os aniversários, a primeira comunhão, o crisma, os 15 anos, o ingresso de um filho na universidade e mais adiante a formatura, a casa nova, a nova praça, a vitória do Flamengo, a de Tancredo Neves. Entre homens do campo, as principais cerimônias são as do batizado, do matrimônio e aquelas que envolvem os ritos da morte da pessoa. É como se no mundo da cidade a festa oscilasse entre um máximo de sentido do universal, como no Natal e no Ano Novo, e, em contrapartida, um máximo de afirmação simbólica do valor da individualidade, como no aniversário. Enquanto no campo, valem mais as cerimônias de reconhecimento de um nós local, como nas festas de santos padroeiros, e de associação da biografia individual ao ritmo e ao sentido da vida comunitária, como no batizado, no casamento e no velório.
                E, mesmo a partir do que acontece com a própria pessoa individual, quando ela se festeja ou é festejada, que emerge clara a idéia tão antiga e atual de que a festa é uma fala, uma memória e uma mensagem. O lugar simbólico onde [formalmente] separam-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silêncio não-festejado, e aquilo que deve ser resgatado da coisa ao símbolo, posto em evidência de tempos em tempos, comemorado, celebrado. Aqui e ali, por causa dos mais diversos motivos, eis que a cultura de que somos ator-parte interrompe a seqüência do correr dos dias da vida cotidiana e demarca os momentos de festejar. Instantes dados à casa ou ao quintal, à igreja, à praça ou à rua em que cada um, alguns ou vários de nós somos, singular ou coletivamente, chamados à cena, postos à cabeceira da mesa e diante de um bolo com velas, presenteados, honrados com falas ou lágrimas. Hei-nos por um instante convocados à evidência, para sermos lembrados ou para que algo ou alguém – outra pessoa, um bicho, um deus – seja lembrado através de nós, para que então alguma coisa constituída como sentido da vida e ordem do mundo seja dita ritualmente através de nós, que, festejados, somos durante a brevidade de um momento especial enunciados com mais ênfase: somos símbolo.
                A ênfase daquilo que a sociedade festeja em nós prefere recair sobre as situações em que ela atesta que alguém transitou de uma posição a outra e, assim, migrou de um de seus espaços de vida e trabalho a outro: de estudante a profissional, de pagão a cristão, de menina a moça “pronta para casar”, de adolescente a guerreiro da tribo, de vivo a morto, de morto a mito. A festa, quando soleniza a passagem e comemora a memória, demarca. A vida passa, passamos. Tudo muda, e tudo é o mesmo: mudamos, somos agora o que não éramos ainda, mas somos os mesmos, diversos: ao mesmo tempo um outro e eu. Envelheço, “vejo em mim o tempo do mundo passar”, e isso pesa. Mas eis que os símbolos dos sistemas de festas de que sou parte, ou alvo, aos poucos me ensinam a substituir a pura energia do desejo do prazer ou o temor de seu fim em mim pela serena vontade de conviver em paz comigo mesmo, entre todos, e possuir a compreensão de tudo. Eis que a festa restabelece laços. Sou eu que se festeja, porque eu sou daqueles ou daquilo que me faz a festa. Estou sólida e afetivamente ligado a uma comunidade de eus-outros que cruzam comigo a viagem do peso da vida e da realíssima fantasia exata das festas que nos fazemos, para não esquecer isto. Juntos, diferencialmente irmanados, pedimos à festa a evidência de que tudo isso, que é a vida, e a vida impositivamente social, é suportável e até bom, porque, sendo irrecusável, pode ser até previsível se revivido com afeto e com sentido. Vista em sua desvestida realidade, a celebração religiosa ou profana, solenidade ou mascarada, não ilude nem oculta. Não disfarça. Ao contrário, ao jogar com a metáfora e romper com o excesso de significante, a ordem social da vida e a ordenação lógica do significado, a festa exagera o real. Se eu disse antes que ela faz ser suportável o inevitável e sua consciência antecipada, é porque ela comemora a possibilidade disto e de tudo o mais ser compreensível e compreendido. Assimilado à lógica da cultura não como sua ilusão – mágicos não fazem festas – mas como a necessidade de transpor umas para outras esferas de trocas, que nem por serem mais motivadamente simbólicas deixam de ser tão socialmente rurais.
                Ele toma a seu cargo os mesmos sujeitos e objetos, quase a mesma estrutura de relações do correr da vida, e os transfigura. A festa se apossa da rotina e não rompe mas excede sua lógica, e é nisso que ela força as pessoas ao breve ofício ritual da transgressão. No Carnaval, que os atores da ordem saiam de si mesmos e produzam outros gestos. Que suspeitem da conduta adequada ao tempo do trabalho e se veja, no espelho invertido do que é socialmente esperado, logo do que simbolicamente limita muito o ser do homem. Os homens se vestem de mulheres, as mulheres de fadas, os pobres de príncipes, os ricos de índios, e os índios de deuses. Em algumas regiões Sudeste da África, mas também na Roma antiga ou no Rio de Janeiro de hoje, as condutas se ultrapassam, e um modo mais denso e enigmático do real emerge... Senhores e servos da metáfora e da memória, conhecemos, criamos e queremos muito mais dimensões da vida e das experiências do ser e do mundo a que a vida sem o ritual nos obriga... Em várias celebrações, os mesmos comportamentos e as mesmas relações entre as pessoas são exagerados: o que se come sempre se come agora, muito mais e em lugares cerimoniais, fora de casa; o que se bebe, bebe-se muito mais e em nome de alguma coisa que mereça o gasto e a ressaca; o que se fala, canta e dança é enunciado por mais tempo e com bastante mais prazer ou fervor...” (BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na Rua. Campinas, SP : Papirus, 2001. 2a edição. Pág. 7-10.)
                COM BASE NO TEXTO ACIMA, RESPONDA:
1.0     Segundo o autor, o que é a nossa vida?
2.0     Há diferença entre as culturas das médias e grandes cidades e entre as das pequenas cidades e  povoados. Que diferença é essa?
3.0     Para o autor, o que é festa?
4.0     Para você, quais são as principais festas do ano? Por quê?
5.0     Segundo o autor, a “festa restabelece laços”, por quê?
6.0     Explique por que a “festa exagera o real”.
7.0     O que a comemoração de seu aniversário representa para você a sua comunidade? Você gosta de ser lembrado em seu aniversário? Por quê?